16 de dezembro de 2006

For all

Um dos estudos mais interessantes que alguém interessado na Língua pode fazer é a etimologia, ou seja, o estudo da origem das palavras. Saber de onde vêm as palavras, qual sua significação original e por que transformações elas passaram ao longo dos tempos é tão excitante quanto útil no dia a dia. Por exemplo, por que a palavra obsessão é com "s" e obcecado é com "c"? Porque se originam de palavras diferentes. Obcecado vem de "cegar" (em latim, caecare ou obcaecare), portanto designa alguém que está cego ou cegado (por um desejo muito forte, por exemplo). O substantivo correspondente é obcecação. A palavra obsessão vem do latim obsessio, onis, que significa assédio, cerco, bloqueio ou ação de sitiar. O verbo mais próximo é obsedar, que vem do francês obséder e do latim obsidere, com a mesma significação de cercar, importunar, assediar. Daí obsessivo.
Um dos melhores dicionários para estudo etimológico é o Houaiss (que se pronuncia "uais", e não "rouêis"). Além da origem, ele traz a datação, ou seja, a data em que tal palavra foi primeiramente registrada.
Agora, eu me divirto mesmo é com o pessoal que inventa etimologia. Sobre isso, leia-se um ótimo artigo de Mário Perini, "Etimologia popular: falsos parentes", no livro A língua do Brasil amanhã e outros mistérios, da editora Parábola. Aos exemplos que ele traz acrescento alguns outros que já cansei de ouvir. Para começar, acho que quase todo o mundo já ouviu alguém explicar que "forró" vem do inglês for all, para todos. É claro, todo o mundo sabe que, pouco depois de inventarem o futebol, os ingleses inventaram uma dança para distrair depois do chá, em que os britânicos esqueciam sua tradicional discrição e saíam rodopiando pelos salões da nobreza, ao som da sanfona. Ora, fala sério, até quem é mais bobinho desconfia. Forró é redução de forrobodó, palavra brasileiríssima, de origem na língua portuguesa. O Houaiss ainda explica que essa palavra tem parentesco com o francês faux-bourdon. Está lá, é só abrir e ler.
Outra curiosidade são os textos que explicam as origens de determinadas expressões idiomáticas. Há muitos dicionários e pouca fidedignidade no que se diz. Por exemplo, a expressão "feito nas coxas" (malfeito, feito de qualquer jeito) tem várias explicações. Uma vez li que ela vinha do tempo dos escravos, que fabricavam telhas usando como molde as próprias coxas. Como cada um tinha a respectiva de um tamanho, o telhado acabava todo torto. Ou seja, feito nas coxas. Outra vez li que vem do tempo dos cavaleiros, que trocavam mensagens durante suas viagens e, para não perder tempo desmontando, as escreviam apoiadas na coxa, o que resultava numa porcaria, claro. Não acredito em nenhuma das duas. Mas me divirto lendo as explicações. Dessa e de várias outras.

Bom, é isso. Quem souber ou quiser saber de outras, deixa o recado aí.
Até!

11 de dezembro de 2006

Critérios de valoração de um livro

Que critérios se devem adotar para julgar se um livro é bom ou ruim? Tentamos responder a essa pergunta no texto abaixo.


Um livro é um grande livro não pela história que conta, mas por elementos que vão muito além do que uma leitura desatenta possa revelar. Não é porque se lê um livro num só fôlego, sem se conseguir largar, que ele é um grande livro. Na verdade, os livros que mais me marcaram foram aqueles que passei meses lendo, ainda que curtos. Não é porque o livro é fácil de ler, ou porque o leitor se identifica com o personagem, que ele é bom. Quando aprecio um livro, buscando responder à pergunta “É bom?”, costumo levar em conta as seguintes características:

Linguagem:

Este é, certamente, o elemento mais importante a ser observado num texto literário. A elaboração formal, a coerência entre a linguagem e o estilo (ressalte-se que linguagem e estilo não são a mesma coisa), a concisão necessária ou a construção intencionalmente perifrástica, prolixa; enfim, esse é o elemento básico da construção de um bom livro. Por isso muitos livros perdem completamente o interesse quando (mal) traduzidos. O contrário também é válido.

Referências:

Não que um bom livro tenha de se encher de citações. Ao contrário, elas costumam deixar o texto pedante. Mas é sempre um índice de criatividade formal a menção, tácita ou evidente, a outra obra ou autor. Para o meu gosto, quanto mais discreta for a referência, melhor; mas essa é uma idiossincrasia. O fato é que uma construção propositalmente ambígua, que estabeleça intertextualidade, ou o recurso à paráfrase e à paródia enriquecem o texto. É desnecessário dizer — mas o digo — que o efeito causado depende da sensibilidade do escritor e, evidentemente, da bagagem de leitura do leitor.

Ponto de vista:

Toda história é contada a partir de um ponto de vista. Mesmo que o narrador seja de terceira pessoa e onisciente. Ele adota um ponto de vista. Se isso não estiver claro, o texto é ruim. Simples assim. Esse ponto de vista pode ser o de um personagem do texto, ou de vários, mas pode ser algo mais, digamos, distanciado. Mas não impessoal. O narrador pode ter um ponto de vista irônico, lamurioso, heroico (como nas epopeias). E esse ponto de vista, é desnecessário dizer (mas digo, mas digo), precisa de coerência. Esse é o aspecto em que muitos livros se enfraquecem. Subitamente, o narrador solta um comentário, ou um adjetivo, enfim, que faz o leitor se perguntar: quem teria dito isso? Ponto negativo para o livro.

Verossimilhança:

Corresponder a história à realidade estrita não é exatamente uma obrigação do ficcionista. Mas é necessária uma coerência interna. A história deve ser crível dentro do próprio universo que ela cria. Excetuam-se, evidentemente, os possíveis jogos a que autores podem recorrer, criando situações notoriamente incoerentes. Contudo, mesmo aí, deve haver uma intenção, normalmente de comismo. Se o autor, a sério ou sem o perceber, cria situações ou personagens que não correspondem aos parâmetros da realidade ou às características ficcionais do próprio enredo, o livro perde em qualidade. Aqui, aliás, escorrega a maioria dos best-sellers da atualidade. Histórias mirabolantes, encontros inesperados e personagens traiçoeiros são ingredientes que, quando bem-empregados, rendem interesse à obra. Quando bem. E, portanto, raramente.

Há outros critérios, mais sutis, como a consideração do contexto histórico de produção do livro. Mas quero dedicar-me a rebater alguns que, definitivamente, não garantem valor a uma obra. Por exemplo, a tal originalidade. Ora, se se tomar essa palavra em sentido estrito, a última vez que se pôde falar em originalidade em Arte foi na, sei lá, Grécia Antiga? O fato é que não há muito o que escrever que não tenha sido escrito já. Nada, na verdade. Outra ideia boba é que um livro é bom se o enredo é intrigante. Disso já falamos no início. Qual é a história do livro? Esta é uma pergunta inútil. Temas banais fazem grandes obras. Depende de outros critérios. Outro elemento que pode servir de valoração é o engajamento. Ora, uma obra defender uma determinada pregação, explicitamente, pode ter efeito positivo no âmbito da sua repercussão, e até no significado histórico desse trabalho. Mas raramente um texto com a intenção primeira de transformar o mundo resulta num grande livro.

Para não ficarmos só na teoria, podemos enumerar alguns exemplos do que foi dito. Machado de Assis escreveu uma das obras capitais da literatura brasileira, aclamada mundialmente, a partir do tema da traição. Nada mais manjado, certo? Errado, porque o trunfo do nosso escritor não foi o tema, mas um conjunto de opções formais que fizeram de Dom Casmurro o que ele é. Primeiramente, a linguagem. A prosa machadiana flui, é agradável, encanta apenas pela própria beleza das imagens, das palavras, dos contrastes entre termos muito próximos, que geram efeitos estéticos que, numa leitura de fruição, muitas vezes nem decodificamos, mas são captados. Outro ingrediente marcante é o ponto de vista adotado. A história de Bentinho ganha interesse adicional porque é contada sob seu próprio ponto de vista, mas não o do mesmo Bentinho personagem, pois D. Casmurro já está velho quando narra a história. Essa escolha, evidentemente, afeta muito o enredo. O leitor é conduzido, na trama, por um narrador velho, desmemoriado e tendencioso. Quem fica perdendo tempo discutindo se Capitu o traiu ou não, na verdade, não percebeu o jogo proposto pelo escritor. Como vamos acreditar no que D. Casmurro nos diz, se o objetivo dele ao escrever a obra é justamente buscar, numa memória fraca e arrependida, motivos para justificar sua desconfiança e suas atitudes contra Capitu? Uma historinha de amor e ciúme: mas um grande livro.

Outro autor de que gosto muito é o português José Saramago. Muita gente o critica pelo conteúdo às vezes ingenuamente idealista de seus textos. Críticas bobas ao capitalismo etc. Mas, veja-se, Saramago não me parece preocupado em apregoar o socialismo em seus textos, e sim em escrever frases belíssimas e construir personagens extremamente interessantes. O que ele faz, aliás, como poucos escritores. No texto de Saramago, encontramos uma mistura frequente — e muito gostosa — da linguagem informal, dos ditados populares, das expressões familiares, com uma sintaxe complexa, rica e bem-amarrada. Ou uma mistura de personagens simples e cotidianos com emoções profundas e difíceis de compreender, porquanto extremamente humanas. Tome-se, como exemplo, o romance Memorial do convento, que muita gente não consegue ler até a décima página, outros acham o melhor livro do mundo. Eu estou mais perto do segundo grupo. É um grande livro, principalmente se analisado do ponto de vista da beleza da linguagem. Memorial do convento me parece um grande poema, uma ópera, uma epopeia. As frases, as imagens, os diálogos, toda a estruturação linguística do texto é de um grau de elaboração formidável. Por isso é um livro difícil de ler, posto que belo. Vencida a barreira do estranhamento da linguagem, lê-se ele com os olhos úmidos. Além do primor formal, Saramago nos apresenta personagens com densa caracterização psicológica, além de descrições espaciais que, ainda que longas — às vezes muito longas —, são tão ricas e nítidas, que transportam o leitor para o meio da Península Ibérica medieval.

Há autores que se destacam pela maneira como rompem drasticamente a estrutura padrão de um texto. Dependendo do grau de intencionalidade dessas rupturas, podemos ter um grande livro. Quando penso em um autor que, de modo magistral, tenha feito essa inovação formal, o primeiro nome que me lembra é o de Jorge Luis Borges. Criatividade temática e formal, aliada a um incomparável domínio da língua e seus recursos, eis os trunfos desse autor. Em Borges, na verdade, encontramos uma tal quantidade de recursos, que se torna impossível (ou desinteressante) falar dele sem ler um texto concreto. Mais adiante, se interessar, podemos ler e analisar um dos contos dele por aqui.

Dados os exemplos, fica a dica: a leitura de um livro não é mera distração; pressupõe análise, avaliação, critérios razoavelmente bem-definidos. Se não, continuaremos comprando como best-sellers uma quantidade enorme de livros que não passam de ficção.

4 de dezembro de 2006

Antes de mais nada

Antes de mais nada, vamos deixar claro: este não é um blogue de "dicas de português para concursos", ou coisa similar. Também não é a coluna do Pasquale ou da Dad, para ficar apitando falta enquanto o pessoal vai falando. A norma-padrão é um modelo, uma referência, e não o jeito certo de falar. A Gramática serve para entender a língua, e não para ninguém entender nada, como acontece frequentemente nas escolas e cursinhos. A língua é para usar e abusar. E os usos ditam as regras. Uma língua não perde suas características estruturais quando alguém diz "pra mim fazer". Vale a pena, na verdade, investigar o que leva tantos falantes a usarem essa estrutura, e por que ela deve ser corrigida em contextos de maior formalidade. Recomendo, sobre esse assunto, conhecer a Gramática de usos, citada aí do lado.
A expressão que intitula esta postagem, por exemplo, é considerada errada pelos paragramatiqueiros de plantão. Não é errada. O português tem diversos casos de dupla negação, principalmente com pronomes como "nada", "nunca" e "ninguém". Quando eu digo "Não vi ninguém", não disse que vi alguém, certo? Então, "antes de mais nada" não traz dúvida alguma quanto ao seu sentido. Aliás, várias outras línguas usam dois elementos de negação, como o pas do francês (que é só uma das possíveis expressões negativas que se casam com o ne).

Quer saber de uma expressão que, esta sim, diz o contrário do que aparenta? "Correr atrás do prejuízo". Ouço e fico imaginando o mané lá, correndo até alcançar o prejuízo. Aonde?! Eu corro atrás de lucro ou, no mínimo, fujo do prejuízo. Mas cada um corre atrás do que quer, então deixa estar.

É claro que, apesar de não estar aqui para bancar a polícia da língua, vamos sacanear impiedosamente textos mal-escritos e mal falados que surgirem por aí. Por exemplo, tem um cartaz do PT, contra a ALCA, fixado no gabinete de um deputado aqui de Brasília, o qual diz o seguinte: "NENHUM ACORDO É MELHOR DO QUE UM ACORDO RUIM". Mandou mal, meu querido, você disse o contrário do que queria. Quem aí sugere uma correção interessante?

A Letra mata

A Língua é um cipoal, perigoso e imprevisível. O poder da palavra não se restringe à criação divina iniciada com o sonoro "Faça-se a luz". Temos todos acesso a esse mecanismo poderoso de... ação. Porque usar a língua corresponde a um ato, uma ação. Dizem por aí que um gesto vale mais que mil palavras. Tenho minhas dúvidas. As palavras são mais fortes que os gestos. É caso de saber usá-las, claro. Daí a importância de compreender esse instrumento (chamar a língua de instrumento é tão impreciso quanto, sei lá, chamar minhas pernas de veículo; mas deixa ficar). A palavra escrita é mais perigosa que a palavra falada? Pode ser, mas pode não ser. Normalmente, a palavra escrita tem maior valor de verdade, por assim dizer. Se está escrito, dá-se maior credibilidade. Talvez por isso ela seja mais perigosa, sim, por seu potencial enganoso. Mas a palavra falada, com sua espontaneidade, naturalidade, sua pressa, pode ser bem mais traiçoeira que a outra, relida e refeita.
O fato é que, falando ou escrevendo, é necessário conhecer a Língua, em seus mínimos detalhes, suas entrelinhas, suas etimologias. Afirmou-se que a língua é sempre contemporânea, sincrônica, como um jogo de xadrez, em que não é necessário o jogador saber o que ocorreu antes, interessa apenas a disposição atual das peças. Ora, só se for para quem fala. Quem estuda a língua precisa conhecer seu passado, o dela. Sua história. E seus disfarces. Palavrinhas que fugiram há tempos do idioma voltam disfarçadas de estrangeirismo. E tem gente querendo proibi-las, achando tratar-se de dominação cultural estrangeira. A língua é cheia de armadilhas, mesmo.
Mas ela não é difícil. Se bem tratada, faz todos os nossos desejos. Se bem.

Aqui, portanto, temos um espaço para discutir a língua e aprender sobre ela. Falaremos de questões gramaticais, usos da norma-padrão e das variedades coloquiais, sociolinguística, leitura, escrita, literatura. Dúvidas são bem-vindas. Correções e acréscimos, também.

Enjoy. Ou seja, vamo' cair dentro!