12 de março de 2013

Vende-se carros

Uma celeuma promovida por esta minha postagem aqui me deixou com vontade de voltar a escrever no blogue. Aliás já estava com vontade antes, mas faltava aquele empurrão. O empurrão veio, e despenquei a escrever.
Um dos assuntos que me têm motivado a refletir ultimamente é um tanto batido, mas continua precisando ser discutido. Trata-se da voz passiva pronominal, sobre a qual já escrevi aqui e aqui também. Mas volto ao assunto.

Uma questão recente de concurso promovido pelo Cespe afirmou, sobre a frase "Esperava-se que a metrópole deixasse de ser tão centralizadora", que a oração iniciada pela palavra "que" seria complemento de "Esperava-se". Inicialmente, o gabarito deu a afirmação como certa; após os recursos, como errada.

Tem razão o gabarito definitivo. A oração tem função de sujeito, numa estrutura de voz passiva pronominal. É o mesmo caso ilustrado no título desta postagem: quando alguém escreve "Vende-se carros", está pensando que "carros" é a coisa vendida, portanto objeto, daí não fazer a concordância entre esse termo e o verbo. Tal raciocínio decorre da associação tão frequente e tão desatenta entre sentido e análise gramatical. Professores mal preparados ensinam que sujeito é quem pratica a ação e objeto é quem a sofre. Tais explicações fundamentam-se exclusivamente em noções de sentido, deixando de lado critérios sintáticos e estruturais da língua. Ora, é evidente que o sentido de uma frase é importante, aliás o mais importante que há, uma vez que, se alguém quer vender carros, o que importa mesmo é o cliente saber disso. Mas, se fosse só para entender o sentido de frases simples, note-se que ninguém precisaria falar em sujeito, objeto, predicado ou qualquer outra classificação gramatical. (Esse raciocínio leva frequentemente à conclusão de que estudar gramática não serve para nada. De fato, se nosso objetivo fosse somente estabelecer comunicação por meio de mensagens simples, ninguém precisava estudar gramática. O que ocorre, porém, é que usamos a língua para expressar -- e talvez formar -- toda a nossa complexidade, e não somente para transmitir informações sobre compra e venda de carros. Para isso, o estudo da gramática é não só necessário, mas desejável e estimulante.)

Voltando ao ponto anterior: o funcionamento gramatical do português ou de qualquer língua tem relação íntima com o sentido do que se diz ou escreve, mas não se limita a ele. Por exemplo as concordâncias: eu não preciso dizer "Os textos antigos revelam a história etc" para ser entendido, bastaria dizer: "Os texto antigo revela a história etc". Ou seja, a concordância não é um fator determinante de sentido, e, sim, um padrão sintático, que evidentemente muda a depender da variedade linguística, principalmente no que se refere ao contexto ou grau de formalidade. Assim também vários outros mecanismos sintáticos não são indispensáveis para o sentido, mas seguem um padrão estrutural da língua, historicamente construído.

Finalmente, vende-se carros: o entendimento de "carros" como objeto me permitiria substituir o termo pelo pronome "os", como qualquer outro objeto (li um livro: li-o ou o li; comprei um carro: comprei-o ou o comprei etc). Pelo mesmo critério, a frase ficaria: Vende-se-os? Os vende-se? Vende-os-se? Se os vende? Ora, qualquer falante de português sabe que essas frases não existem, ninguém diria jamais "vende-se-os". É uma forma impossível na estrutura do português. Donde se conclui que não posso considerar "carros" como objeto. Apesar disso, parece evidente que os carros não vão vender nada. De modo que também não se trata do agente da ação. O estudo atento mostra, no entanto, que o sujeito de um verbo pode indicar o agente da ação ou o paciente dela, ou mesmo nem um nem outro, quando o verbo não expressa ação. Sujeito é uma noção sintática, cuja definição tem a ver com a conjugação do verbo na variedade padrão da língua. Quanto conjugamos um verbo (eu tenho, tu tens, ele tem etc), estamos testando exatamente o funcionamento desse verbo com os seis sujeitos possíveis. Isto quer dizer que o sujeito é, sintaticamente, a explicitação de uma dessas seis alternativas. Às vezes isso coincide com o agente da ação. Mas não na voz passiva, em que o verbo seleciona como sujeito justamento o paciente, e não o agente da ação.

Por isso se justifica a análise de "carros" como sujeito e, portanto, num funcionamento modelar da língua, é necessário usar "Vendem-se carros". A discussão aqui é sobre se a concordância é necessária num anúncio de loja. Minha opinião é que não. A frase "vende-se carros" ocorre em contextos de pouca formalidade e normalmente é direcionada a um público muito amplo e diverso. Os carros não serão piores ou melhores se o dono da loja deixar de fazer a concordância. É capaz até que eles sejam um pouco mais baratos, na medida em que o dono economizou os serviços de um revisor, e um pouco de tinta. Mas divago. Falarei disso em outra ocasião.

Entender "carros" como objeto para justificar a ausência de concordância tem duas implicações: a primeira é que permitiria uma estrutura que ninguém diz ou escreve, que é "vende-se-os"; a outra, gravíssima, é que, automaticamente, todas as placas em que se escreveu "Vendem-se carros" passam a estar erradas, porque não se faz concordância de verbo com o seu objeto, nunquinha. Isto é, milhares de placas, para não falar em milhares de frases da nossa literatura, ficam erradas. Fico proibido de fazer a concordância, se me der vontade. Machado de Assis não serve mais de exemplo porque não escreveu "vende-se carros" em lugar nenhum.

Trata-se de alternativa péssima, a meu ver. Melhor é, mantendo-se a análise de "carros" como sujeito, permitir, como concessão à regra geral (há tantas outras mesmo) a manutenção do verbo no singular, para reforçar a ideia de impessoalidade ou de indeterminação do agente. Isso faz todo o sentido, e a frase seria admissível mesmo no nível formal. Mas chamar "carros" de objeto é um erro de análise sintática, ponto final.

Da mesma forma, na frase do concurso que citei acima ("Esperava-se que a metrópole deixasse de ser tão centralizadora"), a estrutura oracional "que a metrópole deixasse..." equipara-se a "carros", do outro exemplo, e funciona, a oração toda, como sujeito de "Esperava-se", que é uma forma de voz passiva. O mesmo raciocínio vale: se eu achasse que a oração "que a metrópole deixasse..." é objeto, estaria legitimada a pronominalização dela por "o", escrevendo-se "Esperava-se-o". O que, novamente, é impossível. Por isso acertou o Cespe quando alterou a resposta do item para considerá-lo errado.

A principal diferença sintática entre frases como "vende-se carros" e "precisa-se de empregados" é que, na segunda, o elemento paciente da ação está preposicionado, o que o impede de ser considerado sujeito. Dessa forma, ainda que o termo esteja no plural, "precisa-se" estará sempre no singular. No Brasil, somente por hipercorreção ouvimos alguém dizer "precisam-se de empregados", forma que o padrão e o vulgo rejeitam. A intenção semântica é a mesma: indeterminar o agente, quem pratica a ação; mas não são as mesmas relações sintáticas. A primeira tem sujeito determinado paciente, a segunda tem sujeito indeterminado e objeto indireto.

Veja-se um exemplo com o verbo "chamar", que pode ser complementado por objeto ligado por preposição ou sem ela. Posso dizer: Chamei meu filho de João ou Chamei a meu filho de João (o de é opcional em ambos os casos para introduzir o predicativo). Numa estrutura de impessoalização, eu poderia dizer:

1) Chamou-se meu filho de João ("meu filho" = sujeito paciente --> voz passiva);
2) Chamou-se a meu filho de João ("a meu filho" = objeto indireto --> voz ativa com sujeito indeterminado).

A preposição faz toda a diferença: na frase 1, "meu filho" é sujeito paciente, como "carros" lá em cima. Na frase 2 não posso repetir a análise: o sujeito não pode ser preposicionado, por isso tenho que considerar "a meu filho" como objeto. Ora, neste caso, a pronominalização ajuda a validar a reflexão que vimos seguindo. A frase 1 não pode ser reescrita como "Chamou-se-o de João"; mas a frase 2 pode ficar "Chamou-se-lhe de João".

Conclusão: se o termo não pode virar pronome oblíquo, não é objeto; se pode, não é sujeito.
Isso tem implicações na concordância, também. As frases 1 e 2 ficariam, caso se tratasse de vários filhos:
3) Chamaram-se nossos filhos de João e Maria.
4) Chamou-se a nossos filhos de João e Maria.

No caso da frase 3, pelo mesmo motivo por que acho lícito validar a concordância "Vende-se carros", acho justo que se admita "Chamou-se nossos filhos de João e Maria" na norma-padrão. Mas disso muito teórico ainda diverge.

A conclusão da postagem, a qual acabou saindo mais longa que o esperado, é a seguinte: não se pode fazer a mesma análise para as frases "Vende(m)-se carros" e, por exemplo, "Precisa-se de empregados", em decorrência de regras gramaticais que vão bem além do sentido. E estou falando "regras" no seu sentido de recorrências, e não de prescrições. Não é por insistência de professores que os alunos deixam de dizer "vende-se-os": não se diz isso porque a gramática interna da língua, aquela que todo falante fluente conhece ainda que meio inconscientemente, não abrange tal fórmula. Assim também quase não se diz, mesmo em nível menos formal, "precisam-se de empregados".
Por isso é forçoso reconhecer a existência da voz passiva sintética (ou pronominal) no português do Brasil, em oposição ao sujeito indeterminado pela palavra se, embora a concordância dessa forma passiva seja variável e, a meu ver, se devesse aceitar como regular uma estrutura do tipo "vende-se carros".